sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Memoriale- Ônibus 945

"Nossos tempos mudaram, nossos tempos têm máquinas, fumaça, destruição...mas nossos tempos proporcionam um melhor potencial de vida para aqueles com um poder aquisitivo superior."

E para os demais, a vida continua...cada vez mais engolida pela modernização. O pouco da natureza está se esgotando...mas isso já não é novidade...nem sempre foi assim...

Diariamente, minha rotina me obrigava a embarcar no ônibus de número 945, este que me levava pelas mesmas paisagens diariamente. A bordo de uma curta viagem com duração média de uma hora e meia, a paisagem tão repetitiva começava a se tornar cinza. Percebendo tamanha devastação, decidi, através destas simples linhas, registrar o momento de vida da rota que rotineiramente observava. Decidi fazer isso antes que todo o verde e vivo fosse coberto por um reluzente cinza que, não emite nenhum brilho de vida.

"Saindo da rodoviária: Ah, a boa e velha rodoviária. Onde as passagens vendidas eram todas manuscritas, com o timbre da empresa com as letras estilizadas F.L.W. cujo nome até hoje é um misério. Enfim, a atendente, sempre sorridente, muito ocupada, prestava seu serviço vendendo-me o bilhete de forma que suas delicadas mãos preenchiam habilmente os campos da passagem. Por costume, normalmente ela já deixata tudo preenchido, eu apenas lhe pagava e já tinha a passagem prontinha.

Costumava chegar à rodoviária, vários minutos antes, assim tinha tempo de uma breve partida de bilhar com o dono do bar ao lado da bilheteria da empresa F.L.W.; o Sr. Edmundo, era grande e corpulento, mas suas tacadas certeiras, era um desafio diário derrotá-lo. Com um pouco de sorte e muita concentração, sempre vencia.

Ah sim, o ônibus acaba de chegar. Angelo, o motorista, o anjo dos asfaltos. Não poderia ter um nome melhor para um homem de fibra como este; era claro o amor que ele sentia em seu serviço. Fazia questão de desejar a todos uma excelente viagem, nem que a pessoa fosse parar no ponto mais próximo.

Tomei os procedimentos de embarque e sentei-me em minha janela preferida, logo à frente da roda traseira, do lado esquerdo, assim o sol não bateria no meu lado. Agora sim, está dada partida em minha diária viagem à bordo do Ônibus 945."

"A Viagem:  Da rodoviária, o único ponto de parada antes de seguirmos estrada, é um auto-posto de gasolina. O posto é de todo simples, com a bandeira da empresa de combustível que representa. Funcionários sempre dispostos a atender, acenavam para os viajantes que por ali passavam de ônibus, carro, charrete, cavalo, ou até mesmo os aventureiros mochileiros.

Por sorte hoje não havia ninguém embarcando naquele ponto, então Angelo simplesmente buzinou para seus amigos do posto que retribuiram em coro com gritos e piadinhas para Angelo.

Fazendo o balão do auto-posto, seguimos na encosta de uma imponente montanha rochosa com muita vegetação encravada em sua parede, pura sorte natural, isso evita os desmoronamentos de terra em épocas chuvosas. Por falar em clima, verão, ah como está quente e ensolarado! Enfim, voltando à estrada.
Após contornar a montanha, cinematograficamente a paisagem muda para um campo aberto, como se estivéssemos atravessando cenários de um grande estúdio de cinemas. Aqui no campo, a primeira vista do planalto, é um grande lago espelhado. Refletindo o brilho dos céus, o lago estava em tons de azul turquesa, e as nuvens refletidas, brancas como se fossem algodão sob aquela paisagem congelada.

Estrada reta, estrada boa! Angelo acelera sem dó, ele e a máquina confiam um no outro de tal forma que me pergunto às vezes como ele consegue manobrar daquela forma sem tomar uma multa.

Saindo então das montanhas, descendo o planalto com o lago, seguimos em uma íngrime inclinação onde passaremos pelo primeiro vilarejo. "Arcaico" como indicava a placa do vilarejo. Era um lugar calmo, com casas todas simétricamente planejadas, em estilo colonial, os moradores faziam questão de manter todas as tradições. Jovens tiravam o chapéu e acenavam para o imponente ônibus 945. As moças acenavam com lencinhos; logo todos estariam juntos de seus parentes que desembarcariam na estação logo à seguir. Ah! Chegamos! Aqui a primeira parada do 945.

A "Estação" é uma antiga estação ferroviaria, desativada pela modernização das estradas automobilísticas. Aqui as familias dos moradores de Arcaico esperam anciosamente por parentes, amigos, heróis em serviço militar...enfim, o clima que as pessoas deram à estação fez com que a mesma ganhasse um nome especial que e tratado e muito conhecido por todos os moradores e visitantes: a "Estação do Retorno".

Deste modo, é muito comum ouvir: -Estou indo ao Retorno; ou então -Logo logo minha filha chega no Retorno.

Me emocionei com uma cena muito incomum que estava acontecendo na Estação..havia uma garota desembarcando do ônibus 945, o mesmo que eu estava...ninguém mais além da garota desembarcou...lá fora vejo uma mulher que, pela aparência e semelhança, julguei ser a mãe da garota. Ela chorava muito e acariciava o rosto da garota. Agora tudo fazia sentido, a garota era uma intercambista...estava voltando de uma longa viagem e tinha muitas histórias para sua mãe e amigas.

Assim continuamos nossa viagem...a partir da Estação do Retorno, são apenas vinte minutos. Ah sim, agora um pedaço muito desagradável da viagem...Há uma industria sendo construida numa área onde costumava ser um campo de gramado curto e de um verde vivo. Gostaria que parassem essa engrenagem do capitalismo ou que fizessem essas construções em locais próprios, onde a natureza já declarou "morte"."

"Desembarque: Finalmente, chegamos ao fim da viagem...Angelo se despede dos passageiros, perguntando um por um se a viagem lhes agradou...Me pergunto se quando tudo se tornar cinza, Angelo continuará tendo a mesma vontade e gentileza..."


Deste modo, quando tudo estiver perdido, fecharei os olhos e me lembrarei eternamente da estrada cinematográfica e do querido Ônibus 945.

Um comentário:

  1. Perfeito!! Apesar d imensa (rs) vc conseguiu me prender até o fim. A história é linda, e da para imaginar cada pedacinho da viagem do Ônibus 945.

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